No início da pandemia ocasionada pelo vírus SARS-COV-2 (COVID-19), escrevi um artigo sobre os efeitos jurídicos entre a quarentena e as locações residenciais.
Naquele momento a principal discussão sobre essa modalidade de locação referia-se a qual instituto seria aplicado em razão do sinalagma e da bilateralidade do contrato, caso fortuito ou força maior, onerosidade excessiva ou teoria da imprevisão.
Os Decretos que sucederam foram afetando economicamente o mercado das locações, especialmente para a modalidade residencial a qual me posicionei pela incidência do art. 393 do Código Civil entendendo que o advento do COVID figurava-se como força maior e, portanto, excludente de responsabilidade pelos efeitos da mora.
Passados um ano do início da pandemia o vírus deixou de ser um fato imprevisível e extraordinário para os contratantes, muitas negociações foram realizadas, com aditamentos contratuais, outros casos levados ao Judiciário com a matéria ainda sub judice.
Conforme a contaminação vai atingindo a sociedade os Governos Estaduais e Prefeituras Municipais editam novos Decretos a cada semana.
De forma diversa das locações residenciais na qual o uso do imóvel pelo locatário é contínuo, nas locações comerciais ou não residenciais, esse uso passou a ser proibido por ordem pública advinda dos mais variados Decretos.
No presente artigo não busco tratar sobre a possibilidade econômica de pagamento do aluguel, mas sim quanto a real fruição do direito pessoal de uso pelo Locatário sobre coisa alheia, finalidade precípua e da natureza do contrato.
Na lição de Flávio Tartuce na Obra Teoria Geral dos Contrato e Contratos em Espécie, V. 3, 7ª ed., Editora método, p.337:
“Genericamente, em sentido amplíssimo, o contrato de locação é aquele pelo qual uma das partes, mediante remuneração (aluguel, salário civil ou preço), compromete-se a fornecer à outra, por certo tempo, o uso de uma coisa não fungível, a prestação de um serviço, ou a execução de uma obra determinada”
Para melhor entendimento, usamos a teoria do Diálogo das Fontes defendida pelo Ilustre Doutrinador Flávio Tartuce, ora citado, observando o art. 595 do Código Civil que conceitua a locação de coisas, como a cessão por prazo determinado do direito ao uso e gozo de “coisa não fungível”.
Juridicamente o bem imóvel é espécie do gênero coisa, um bem infungível e singular diante de sua individualidade.
Partimos então para a lei especial nº 8.245/91 que em seu art. 22, I e II define a obrigação do Locador em entregar o imóvel locado ao Locatário e garantir seu uso pacífico; e no art. 23, II a obrigação do Locatário em servir-se do imóvel para o uso convencionado e presumido e com o fim a que se destina.
São regras da lei especial que servem para a locação, um contrato comutativo e sinalagmático, ou seja, bilateral, oneroso e com obrigações para ambas as partes.
Superada a obrigação do locador em entregar o imóvel, chegamos ao ponto principal do estudo, a garantia do uso, e nesse sentido citamos a lição da Dra. Moira Regina de Toledo Bossolani, ao comentar o art. 22 da lei 8.245/91 na obra Locação Ponto a Ponto, Editora IASP, p. 212:
“Mas não basta só a entrega: a lei ainda determina no inciso II do referido artigo que o locador deve garantir durante a locação o uso pacífico do imóvel. Tal norma está relacionada tanto a atos do próprio locador, que não pode turbar a posse, ficar incomodando o locatário injustificadamente, quanto a de terceiros, visto que este deverá empreender esforços para que esta ocupação mansa aconteça.”
Ocorre que a ordem do poder público imposta por Decreto de Lockdown ou que vede a abertura do estabelecimento, atinge diretamente os direitos das partes nas relações privadas, impedindo que o Locador possa garantir ao locatário seu direito ao uso.
Desta forma, conforme já mencionado, fica prejudicada a finalidade do contrato de locação não residencial, pois no citado inciso II do art. 23, a lei é clara com o termo “fim a que se destina”.
A manutenção do endereço físico ou a guarda dos bens móveis não significa exercício interno da atividade comercial. Trata-se de posse direta, porém, sem direito ao uso.
Assim surge a questão de interpretação sobre a contraprestação do aluguel, se é devida pelo exercício da posse ou pela concessão e garantia do uso.
O fim a que se destina o imóvel locado, mencionado na lei especial, deve ser interpretado como exercício pleno da atividade.
Ressalvadas opiniões contrárias, não existindo o uso por força alheia à vontade das partes, a contraprestação pelo período equivalente deixa de ser exigida, sob pena de enriquecimento de uma parte em detrimento da outra.
Ressalte-se que não estamos falando de inadimplemento e sim de suspensão dos efeitos do contrato.
Lembramos que obras urgentes determinadas pelo poder público autorizam o desfazimento da locação sem ônus ao Locador, conforme art. 9º, IV da lei de Locação.
Entendemos a impossibilidade de uso como uma espécie de interdição do imóvel, seja parcial ou total, para o fim destinado. Nas relações locatícias pode ser aplicada por analogia a teoria do “Fato do Príncipe”.
Fato do Príncipe, uma ação Estatal de ordem legal com força de ingerência a produzir efeitos nos particulares, porém, sua aplicação em regra ocorre nas relações entre particulares e administração pública, embora já exista reconhecimento da teoria na esfera trabalhista.
O que defendo como presente artigo é a aplicação por analogia deste instituto, suspendendo parcialmente ou totalmente os efeitos dos contratos e as obrigações nele estabelecidas tais como garantia do uso e pagamento do aluguel pelo período correspondente, sem qualquer ônus às partes.
É importante realçar que havendo parcialmente o uso do imóvel seria o caso de redução do locativo, mas me atenho a medida de Lockdown com vedação total.
Obrigações acessórias como despesas ordinárias de condomínio e impostos não englobam essa proteção, pois não possuem relação com o uso do imóvel.
Enquanto não houver estabilização dos efeitos da pandemia e continuarem a ser editados novos Decretos e Leis que afetem as relações privadas, a matéria continuará a gerar debates no âmbito jurídico.
Desta forma, mostra-se imperioso que os novos contratos de locação contenham cláusulas que regulem a questão da determinação pública, além daquelas já previstas na lei, assim como a exata e bem definida atividade fim do Locatário.
Mais que a permissão legal para o negócio jurídico processual criada com o advento do Código de Processo Civil, todos contratos precisam conter regras de caráter transitório, em que pese a impossibilidade de prever o futuro.
Deixo para um futuro estudo a responsabilidade civil do Estado por ato lícito e se as excludentes de responsabilidade podem ser arguidas em sua defesa.
Referências:
Lei 8.245 de 18 de outubro de 1991 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8245.htm
Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 – http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
BUSHATSKY, Jaques et al. (Coord.) Locação ponto a ponto: comentários à Lei 8.245/91 / coordenação Jaques Bushatsky e Rubens Carmo Elias Filho. São Paulo: Editora Iasp, 2020.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie; 7ª ed. – Rio de Janeiro: Forense – São Paulo: Mérodo, 2012.
ROODRIGUES, Silvio, Direito Civil, v. 3: Dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. São Paulo: Saraiva, 2002.
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Publicado em 17 de março de 2021
Luis Fabio Mandina Pereira
Advogado no Mandina Pereira Escritório de Advocacia – Diretor da Comissão de Direito Imobiliário da 116ª Subseção OAB/SP

