Recentemente a Presidência da República adotou a Medida Provisória 881/2019, instituindo a Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica.
Sem entrar no mérito quanto a relevância e urgência exigidas pelo art. 62 da Constituição Federal e que a princípio nos parece inexistir, buscamos tratar da alteração sofrida pelo art. 421 do Código Civil.
Incialmente cabe uma passagem pela linha do tempo que nos mostra a evolução do Direito Civil.
Após a proclamação da República, em 1899 o então Ministro da Justiça e futuro presidente Epitácio Pessoa convocou o jurista e filósofo Clóvis Beviláqua para que apresentasse um projeto de lei civil que somente foi promulgada em 1916.
O Direito Civil brasileiro da época, de natureza privada e patrimonialista, era baseado no sistema romano-germânico, mas tinha também como base o Código Civil Francês.
O artigo 1º do Código revogado assim dispunha:
Art. 1o Este Código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações.
Em razão do momento em que foi elaborado, na parte obrigacional, a segurança jurídica norteava a interpretação dos negócios jurídicos materializados pelo contrato.
Na lição do Ministro Luiz Edson Fachin em Teoria Critica do Direito Civil, p. 6, o Direito Civil era mais um direito dos bens do que da pessoa.
Nesse cenário os contratos eram alicerçados na autonomia de vontade das partes, aplicando-se o princípio do pacta sunt servanda. Era praticamente inadmissível a intervenção externa nos negócios entre particulares.
O princípio da força vinculante do contrato exigia que a parte ao expressar conscientemente sua vontade cumprisse sua obrigação, ainda que aquilo lhe causasse prejuízo, somente se desobrigando pela ocorrência de caso fortuito ou força maior.
Contudo, a sociedade foi evoluindo e com ela o Direito, afinal a sociedade caminha mais rápido que o Direito.
Com o advento da Constituição Federal brasileira de 1988 a autonomia privada passou a ser analisada pela doutrina e jurisprudência de forma relativizada, pois a Constituição cidadã com matriz existencialista, fez surgir novos princípios como a função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana.
A Constituição em seus quatro primeiros artigos, apresenta os princípios fundamentais da República e a qual as normas infraconstitucionais também devem observar sob pena de estarem fadadas à declaração de inconstitucionalidade. O solidarismo constitucional passou a ser um dever jurídico.
Havia clara necessidade de adequação da legislação civil à Constituição de 1988. Surgiram novas jurisprudências, novas doutrinas e como consequência o nascimento do Código Civil de 2002, lei 10.406/02.
Acompanhando essa evolução a autonomia da vontade passava a ser limitada pela lei, pela moral e pela ordem pública.
O art. 421 que é objeto desse breve estudo assim previa:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
A redação do artigo, assim como de outros dispositivos, demonstrava que o Código de 2002 veio encerrar a crise entre do Direito Civil tradicional e a Sociedade, seu meio social.
Na lição de Flávio Tartuce: “ Com as recentes inovações legislativas e com a sensível evolução da sociedade brasileira, não há como desvincular o contrato da atual realidade nacional, surgindo a necessidade de dirigir os pactos para a consecução de finalidades que atendam aos interesses da coletividade. Essa a primeira face da real função dos contratos”.
O contrato deixou de ter o conceito tradicional de acordo de vontades com fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos, para com base na solidariedade constitucional, produzir efeitos entre as partes e perante terceiros.
Pelo direito contemporâneo a interpretação do contrato admite o diálogo das fontes, como por exemplo, uma análise do Código Civil com o Código de Defesa do Consumidor e com a própria Constituição Federal.
É a tese de um Direito Civil Constitucional, não afastando a proteção do direito patrimonial, mas observando com prioridade o indivíduo, sujeito de direitos e princípios como a vedação ao enriquecimento sem causa, a boa-fé objetiva, a eticidade, entre outros.
Ocorre que a Medida Provisória denominada “Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica”, alterou a redação do art. 421 do Código que passa a ter seguinte redação:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica. (Redação dada pela Medida Provisória nº 881, de 2019)
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional. (Redação dada pela Medida Provisória nº 881, de 2019)
Frisando que o presente texto não tem viés político, mas apenas de estudo do Direito Civil, é preciso citar que na exposição dos motivos da Medida Provisória extrai-se como objetivos: a desburocratização, a interferência mínima do Estado nas relações privadas, segurança jurídica e principalmente recuperação da economia.
Já de início na exposição de motivos verifica-se a citação ao livre mercado em consonância com o art. 170 da Constituição Federal, mas o caput do citado artigo é claro ao expor a finalidade da ordem econômica, qual seja, assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da Justiça Social.
Ora, retomar o princípio do pacta sunt servanda em supremacia aos demais princípios do Código Civil e contratuais significa estancar a evolução do direito civil, em especial o contratual.
Não devemos pregar a extinção da segurança jurídica contratual, mas sim manter a possibilidade de interpretação e até mesmo intervenção quando necessárias ao fim social a que se destina.
A medida provisória coloca o livre mercado acima dos direitos individuais, nos parecendo aplicável ao caso o ditado popular de que “os fins não justificam os meios”.
Por fim, entendo que a alteração na redação do art. 421 e principalmente os seus motivos, demonstram conflito com princípios constitucionais saindo do contexto da atual legislação civil brasileira. Aguardamos a análise do Congresso Nacional sobre o tema.
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Luis Fábio Mandina Pereira – Advogado, atualmente Diretor da Comissão de Direito Imobiliário da 116ª Subseção da OAB São Paulo – Jabaquara/Saúde.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv881.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Tartuce, Flávio. Direito civil, v.3: teoria geral dos contratos e contratos em espécie; 7ª ed. – São Paulo: MÉTODO, 2012.
Fachin, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. – 3. Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
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Publicado em 17 de março de 2021
Luis Fabio Mandina Pereira
Advogado no Mandina Pereira Escritório de Advocacia – Diretor da Comissão de Direito Imobiliário da 116ª Subseção OAB/SP