Começamos tecendo considerações sobre a evolução dos negócios jurídicos que constituem a locação de imóveis, seja pelo viés da relação entre Locador e Locatário, destes com objeto da locação, bem como pelo momento histórico e a sucessão das regras que regulam o mercado imobiliário.
A lei, como fonte principal do direito, é um preceito jurídico de regulação ou ordenação a vida social.
No caso das locações imobiliárias, ressalvadas as exceções que envolvam o poder público, estamos diante de uma relação de direito privado, ou seja, entre particulares.
É importante realçar que o Código Civil de 1916, lei 3071/16, foi a primeira legislação a tratar de locação em seu Capítulo IV, com regras gerais na locação de coisas e específicas sobre as locações de prédios em seus artigos 1200 ao 1215.
O respeito ao contrato e ao pacta sunt servanda, passava a garantir maior segurança e liberdade à vontade das partes, conforme a lição de Sylvio Capanema:[1]
“O Código Civil de 1916, cujo projeto foi encaminhado ao Congresso ainda no século XIX, refletia os princípios do liberalismo clássico, então vigente, ancorado nos dogmas da autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos. Pouco, ou quase nada, interferia o Estado na formulação dos contratos, entendendo que tudo que neles se convencionava seria justo, desde que as partes fossem livres para celebrá-los. Aplicava-se a velha máxima francesa: “disse contratual, disse justo”
Até do advento do Código Civil, muitas das leis que tratavam do registro imobiliário eram da época do império e tinham por objeto as hipotecas e as transmissão de direitos reais sobre os imóveis, como a lei 1.237 de 1864, a lei 3.272 de 1885 e posteriormente os Decretos 169 A, 370 e 544 todos de 1890.
Ainda fazendo um paralelo entre o registro imobiliário e as locações de imóveis, foi no artigo 856 do Código Civil que passamos a ter previsão dos títulos que eram suscetíveis à transcrição, os que transmitiam a propriedade, os que instituíam direito real sobre coisa alheia, julgados, sentenças, cartas de arrematação, adjudicação e a inscrição da hipoteca.
No mesmo diploma legal o legislador tratou de ambos os institutos, porém, a locação ainda era afastada do registro imobiliário. A proteção da publicidade e da segurança jurídica permaneciam restrita aos direitos reais.
Contudo, no ano e 1921, sob a presidência de Epitácio Pessoa, foi editado o Decreto 4.403, para regular as locações de prédios urbanos, ainda sem versar sobre garantias, direito de vigência, preferência ou renovação.
Trataremos em outro artigo sobre a publicidade concedida pelo Registro Imobiliário à locação, porém, poucos anos após o Decreto de 1921, a lei 4.827 de 1924 que veio reorganizar os registros públicos tratados pelo Código Civil, ampliou os títulos levados à transcrição e averbação, incluindo em seu art. 5º, “b”, II, o contrato de locação que trouxesse em seu texto a cláusula de vigência.
O que vimos na sequência foi uma legislação de registros públicos que passava por revisão completa, enquanto as normas de locação eram editadas para tratar de matérias específicas, como no caso da “lei de luvas” (Decreto 24.150 de 1934) que regulava as condições para renovação dos contratos de locação de imóveis destinados a fins comerciais e industriais.
Conforme a lição de Pontes de Miranda em sua obra Tratado de Direito Predial, Locação. Prorrogação, um grande problema dos tempos atuais já era observado à época:[2]
“Certa incapacidade técnico-econômica dos legisladores, a par de deficiente cultura jurídica, os levou a tratarem o problema da deficiência de habitações e de desajustamento entre os ganhos individuais e a lata dos alugueres, como problema de estabilização dos contratos de locação, ou de alguns de seus elementos. A finalidade seria a proteção dos locatários, donde o nome “leis de inquilinato”; mas, como era de esperar, o ataque político-jurídico, sem o ataque econômico-moral, produziu a fraude da “luvas” e os expedientes de suborno nas interpelações por falta de pagamento, ao mesmo tempo que preparou o caminho para que as propriedades, diminuídas em suas rendas, passassem, aos poucos, às companhias hipotecárias e a grupos de adquirentes, organizados de acordo com política financeira de retenção e crédito.”
É com a “lei de luvas” que começamos a perceber uma mudança de olhar do legislador aos contratos de locação, com a observação de sua influência na economia.
Na leitura dos considerandos ou exposição dos motivos, percebe-se a preocupação em inserir o princípio da equidade, a proteção ao valor incorpóreo do fundo de comércio, a visão de locupletamento do proprietário locador em detrimento do inquilino, bem como a pressão política estabelecida por associações de classe.
A liberdade de contratar passava a ser mitigada e já não se mostrava tão absoluta, surgia a renovação compulsória do contrato.
Seguindo a linha histórica das leis de locação em paralelo às leis de registros públicos, o Decreto 4.857/39 mantinha o contrato de locação sujeito à inscrição, ano que teve início a segunda guerra mundial que perduraria até 1945.
Durante esse período tivemos a edição de Decretos-lei que tratavam da locação em caráter emergencial. Reforçava-se a ideia de intervenção do Estado nas relações locatícias.
Em 20 de agosto de 1942, Getúlio Vargas promulga o Decreto 4.598, e já no artigo primeiro congela os valores da contraprestação pelo uso (BRASIL 1942):
Art. 1º Durante o período de dois anos, a contar da vigência desta lei, não poderá vigorar em todo o território Nacional, aluguel de residência, de qualquer natureza, superior ao cobrado a 31 de dezembro de 1941, sejam os mesmos ou outros o locador ou sub-locados e o locatário ou sub-locatário, seja verbal ou escrito o contrato de locação ou sub-locação.
Parágrafo único. Será, todavia, respeitada a estipulação escrita, anterior a 31 de dezembro de 1941, que tiver fixado aluguel superior para vigorar depois daquela data.
Nos decretos-lei que sucederam, 5.169/43 e 6.739/44, a preocupação do Estado era o controle sobre os despejos e sobre o valor do aluguel.
Somente após o término da Segunda Guerra mundial surge o Decreto-lei 9669 de 29 de agosto de 1946 que em seus 26 artigos passou a regular a locação de prédios urbanos revogando todos os decretos emergenciais.
A cláusula de vigência que até então era encontrada apenas na legislação de registros públicos, passou a ser reconhecida com o advento da lei 1.300 de 1950, que faz a primeira correspondência ao sistema registral no parágrafo único do artigo 14.
Em que pese as inúmeras legislações sobe o tema, é perceptível a busca do legislador na regulação do mercado com normas cogentes, sobre as quais existia pouco ou nenhum espaço para negociação entre as partes.
O direito de preferência passou a ser reconhecido na lei 4.494 de 25 de novembro de 1964, ainda sem relação ao registro público e sem o direito de sequela, estipulando apenas o direito a indenização em caso de descumprimento da norma.
Já sob a vigência da lei 4.591/64, lei de condomínios e incorporações imobiliárias, a lei 6649/79 trouxe nova normatização sobre despesas condominiais e o direito de preferência, que sob a alteração inserida pela lei 6.698 do mesmo ano, consignou o direito de sequela ao inquilino que tivesse o contrato inscrito no registro imobiliário com antecedência mínima de 30 dias da alienação.
Vivíamos em uma época na qual a visão do Estado era a proteção ao inquilino, pois a aquisição da propriedade não era acessível à grande parte dos brasileiros, porém, essa proteção gerava como natural consequência o desestímulo do proprietário na disponibilização do imóvel para locação.
Para Márcio Antônio Bueno (São Paulo, 2020):[3]
“Neste período em vigor a Lei 6.649/79, tida pelos operadores do mercado imobiliário com francamente favorável aos inquilinos. E sem dúvida que era principalmente pela vedação da denúncia vazia. Alugado um imóvel residencial, quase nenhuma possibilidade existia de o locador retomar o imóvel, mesmo findo o prazo contratual.”
A lei do inquilinato de 1979 já convivia com o sistema da lei 6015/73, que previa o registro da cláusula de vigência e averbação da cláusula de preferência. Durante sua vigência foi promulgada a Constituição Federal de 1988, denominada Constituição cidadã, como norma principal e base para as legislações infraconstitucionais.
Passados dois anos da promulgação da Constituição Federal, o país vivenciou época de grande recessão que também afetava o mercado de locações. As associações imobiliárias e administradoras entenderam que o momento econômico, cumulado com a grande proteção ao inquilino, geravam desequilíbrio contratual e exigiam uma nova normatização.
Por encomenda aos Juristas Sylvio Capanema de Souza, Geraldo Beire Simões e Pedro Antônio Barbosa Cantizano, criou-se em 1990 um anteprojeto de lei que foi encaminhado a uma Comissão Interministerial formada pelos Ministérios de Ação Social, da Economia, da Fazenda e Planejamento.
No encaminhamento ao Presidente da República, Sr. Fernando Collor de Melo, a comissão interministerial expôs motivos para apreciação do projeto da lei de locações, tais como:
- a inviabilização de investimentos na construção civil e na locação e imóveis ocasionada pela presunção de hipossuficiência que a lei anterior dava ao locatário;
- a escassez de imóveis no mercado, fato que elevava o valor do aluguel gerando consequências inflacionárias;
- restrições ao direito de retomada que violavam o direito de propriedade;
- a manutenção de estabilidade ao locatário;
- a composição entre os interesses envolvidos;
- maior celeridade nas ações de despejo e por fim;
- a solução habitacional do país baseada na liberdade de negociação e ausência de regras excessivamente protetivas.
Para maior compreensão citamos aqui o item 16 da respectiva exposição:[4]
16. Há muito o que fazer até que as mencionadas necessidades dos brasileiros por moradia sejam efetivamente supridas. O presente projeto de lei do inquilinato, ao buscar o equilíbrio de mercado através da livre negociação e da ausência de regras excessivamente protecionistas, certamente contribuirá para minimizar o grave problema habitacional do país.
O projeto de lei sofreu diversas emendas, contudo, o texto final conseguiu o objetivo de atender interesses de locadores e locatários, criando-se uma norma cogente de natureza pública, lei 8.245/1991, e que nos últimos 30 anos exerceu sua principal finalidade, maior oferta de moradia.
Uma das principais solicitações dos locadores era o direito de retomar o imóvel pela denúncia vazia, e nesse ponto foram atendidos, enquanto os institutos das ações revisionais e renovatórias mantiveram a proteção ao inquilino.
A então nova legislação revogou o Decreto 24.150/34 (lei de luvas), e passou a regular todas as formas de locações urbanas, com regras gerais e capítulos específicos para locações residenciais, de temporada e locações não residenciais.
Nesse sistema jurídico tínhamos a Constituição como norma maior do Estado, a lei especial de locação e o Código Civil de 1916, revogado posteriormente pela lei 10.406/2002.
Para a constitucionalidade da lei de locação, foram observados os preceitos de proteção à propriedade, função social da propriedade, direito social de moradia, proteção ao consumidor e garantia de políticas urbanas.
O pacta sunt servanda antes previsto na legislação civil foi relativizado, cedendo espaço para princípios contratuais como boa-fé, eticidade e função social do contrato. Especificamente na lei do inquilinato, o art. 45 estabeleceu limites na autonomia da vontade pelas partes, considerando nulas as cláusulas contratuais que visassem elidir os objetivos da lei.
Seguindo as mudanças do mercado de locação a lei passou por alterações, sendo as principais pela lei 12.112/2009 e a lei 12.744/2021, esta última tratando do contrato “built to suit”, que acrescentou à legislação especial o art. 54 A, e, para este tipo de contratação, a livre pactuação entre as partes.
Percebe-se novamente um início de flexibilização efetiva nas locações não residenciais, que foram reforçadas pelo retorno do princípio da intervenção mínima do Estado e da limitação para a revisão contratual previstos nos arts. 421 e 421 A do Código Civil.
Novas ferramentas para disponibilização de imóveis, a digitalização dos negócios e do próprio registro público, o aquecimento da construção civil com surgimento de fundos imobiliários, a mudança de visão na concepção de locador e locatário, somados, deram ensejo ao questionamento sobre o futuro da legislação.
No futuro veremos se o melhor caminho será um verdadeiro diploma na forma de consolidação, ajustando a atual lei conforme a exigência do mercado, ou após 30 (trinta) anos de vigência, a revogação por completo da lei 8.245/91 para que não exista o conflito entre os objetivos iniciais da lei e as novas modalidades de contratação.
[1] EDITORA JUSTÇA E CIDADANIA. A proteção legal do fundo empresarial: evolução e “ratio essendi”. Disponível em https://www.editorajc.com.br/a-protecao-legal-do-fundo-empresarial-evolucao-e-ratio-essendi/. Acesso em 27/04/2021.
[2] MIRANDA. Pontes de. Tratado de Direito Predial. Locação e Prorrogação. Rio de Janeiro. 1952. p.43
[3] BUSHATSKY, Jaques et al. (Coord). Locação ponto a ponto: comentários à Lei 8.245/91. São Paulo: Editora Iasp, 2020. p.41
[4] SIMÕES. Geraldo Beire. Elaboração, tramitação legislativa, e acordos políticos da Lei nº 8.245/91. Disponível em www.mercadantesimoes.com.br. Acesso em 27/04/2021.
Publicado em 18 de outubro de 2021
Luis Fabio Mandina Pereira
Sócio em Mandina Pereira Escritório de Advocacia